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terça-feira, 24 de setembro de 2013

OS SETE SABERES NECESSÁRIOS À EDUCAÇÃO DO FUTURO

Edgar Morin Em relatório da UNESCO, coordenado por Jacques Delors, estabeleceram-se os quatro pilares da educação contemporânea: aprender a ser, a fazer, a viver juntos e a conhecer. Ela só pode ser viável se for uma educação integral do ser humano. Com o objetivo de aprofundar a visão transdisciplinar da educação, a UNESCO solicitou a Edgar Morin que expusesse suas idéias sobre a educação do amanhã. Este texto apóia-se sobre o saber científico, provisório, para situar a condição humana, mas também desemboca em profundos mistérios referentes à vida, ao ser humano, ao universo... 

Capítulo I: AS CEGUEIRAS DO CONHECIMENTO: O ERRO E A ILUSÃO A educação que visa a transmitir conhecimentos é cega quanto ao que é o conhecimento humano, seus dispositivos, enfermidades, dificuldades, tendências ao erro e à ilusão, e não se preocupa em fazer conhecer o que é conhecer. O conhecimento não é uma ferramenta ready made, utilizada sem que sua natureza seja examinada. O conhecimento do conhecimento deve ser uma necessidade primeira, uma preparação para enfrentar os riscos permanentes de erro e de ilusão, que não cessam de parasitar a mente humana. Trata-se de armar cada mente no combate vital à lucidez. É necessário introduzir e desenvolver na educação o estudo das características cerebrais, mentais, culturais do conhecimento humano, seus processos e modalidades, o estudo das disposições psíquicas e culturais que o conduzem ao erro ou à ilusão. O maior erro seria subestimar o problema do erro; a maior ilusão seria subestimar o problema da ilusão. A educação deve mostrar que não há conhecimento que não esteja ameaçado por tais riscos. Todas as percepções são traduções, reconstruções cerebrais com base em estímulos captados e codificados pelos sentidos. Ao erro da percepção acrescenta-se o erro intelectual. O conhecimento sob forma de palavra, de idéia, de teoria, é o fruto de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento e está sujeito a erro. A projeção dos desejos ou medos e as perturbações mentais trazidas pelas emoções multiplicam os riscos de erro. O desenvolvimento da inteligência é inseparável do mundo da afetividade, da curiosidade, da paixão, que, por sua vez, são a mola da pesquisa filosófica ou científica. Não há um estágio superior da razão dominante da emoção, mas um eixo intelecto x afeto e, de certa maneira, a capacidade de emoções é indispensável ao estabelecimento de comportamentos racionais. A educação deve dedicar-se, por conseguinte, à identificação da origem de erros, ilusões e cegueiras. Os erros mentais Nenhum dispositivo cerebral distingue a alucinação da percepção, o imaginário do real, o subjetivo do objetivo. É grande a importância do imaginário no ser humano - as vias do sistema neurocerebral, que colocam o organismo em conexão com o mundo exterior, representam 2%, enquanto 98% se referem ao funcionamento interno. Tal fato constitui um mundo psíquico relativamente independente, em que fermentam sonhos, desejos, imagens, fantasias, e esse mundo infiltra-se em nossa visão ou concepção do mundo. A mente é dotada de potencial de mentira para si próprio (self-deception). O egocentrismo, a necessidade de autojustificativa, a tendência a projetar sobre o outro a causa do mal fazem com que cada um minta para si próprio, sem detectar a mentira da qual é autor. A memória é também fonte de erros - não regenerada pela rememoração, tende a degradar-se. A mente, inconscientemente, tende a selecionar as lembranças que convêm e a recalcar ou apagar as que incomodam. Tende a deformar as recordações por projeções ou confusões inconscientes. Existem falsas lembranças. Os erros intelectuais Teorias, doutrinas, ideologias estão sujeitas ao erro, que é protegido por esses sistemas de idéias. As teorias resistem à agressão das teorias inimigas ou dos argumentos contrários. As doutrinas (teorias fechadas sobre elas mesmas e absolutamente convencidas de sua verdade) são invulneráveis a qualquer crítica que denuncie seus erros. Os erros da razão A racionalidade é corretiva. Ela é a melhor proteção contra o erro e a ilusão. Existe a racionalidade construtiva, que deve manter-se aberta ao que a contesta para evitar que se feche em doutrina e se converta em racionalização; por outro lado, há a racionalidade crítica exercida, particularmente, sobre os erros e ilusões das crenças, doutrinas e teorias. A racionalidade traz a possibilidade de erro e de ilusão quando se perverte em racionalização, que é fechada. O racionalismo ignora os seres, a subjetividade, a afetividade e a vida; é irracional. A verdadeira racionalidade negocia com a irracionalidade. É não só crítica, mas autocrítica. A racionalidade não é uma qualidade da qual são dotadas todas as mentes. É possível ser sábio em uma área de competência e irracional em outra. Da mesma forma, a racionalidade não é uma qualidade exclusiva da civilização ocidental. Em qualquer sociedade, mesmo arcaica, há racionalidade na elaboração de ferramentas, na estratégia da caça, no conhecimento das plantas, dos animais, do solo, ao mesmo tempo em que há mitos, magia e religião. Começamos a nos tornar racionais quando reconhecemos a racionalização até em nossa racionalidade e reconhecemos os próprios mitos. Daí decorre a necessidade de reconhecer na educação do futuro um princípio de incerteza racional. As cegueiras paradigmáticas O paradigma cartesiano separa o sujeito e o objeto; determina a dupla visão do mundo: sujeito/objeto, alma/corpo, espírito/matéria, qualidade/ quantidade, finalidade/causalidade, sentimento/razão. Ao determinismo de paradigmas e modelos explicativos associa-se o determinismo de convicções e crenças, que impõem a todos a força do sagrado, do dogma e do tabu. O poder imperativo e proibitivo dos paradigmas, crenças oficiais, doutrinas reinantes e verdades estabelecidas, determina os estereótipos cognitivos, as idéias recebidas sem exame, as crenças estúpidas não-contestadas, os absurdos triunfantes, a rejeição de evidências em nome da evidência, e faz reinar em toda parte os conformismos cognitivos e intelectuais. O imprinting cultural (marca indelével imposta pelas primeiras experiências do recém-nascido) inscreve o conformismo a fundo, e a normalização elimina o que poderia contestá-lo. A noologia: possessão As crenças e as idéias não são somente produtos da mente, são também seres mentais que têm vida e poder. Podem possuir-nos. Desde o alvorecer da humanidade, encontra-se a noção de noosfera (a esfera das coisas do espírito) com o surgimento dos mitos, dos deuses e dos seres espirituais, que impulsionou e arrastou o Homo sapiens a delírios, massacres, adorações e sublimidades desconhecidas do mundo animal. Produto de nossa alma e mente, a noosfera está em nós e nós estamos na noosfera. Os mitos tomaram forma e realidade com base nos sonhos e na imaginação. As ideias, com base nos símbolos e nos pensamentos de nossa inteligência. Mitos e ideias invadiram-nos, deram-nos emoção. Os humanos possuídos são capazes de morrer ou de matar por um deus, por uma ideia. As ideias existem pelo homem e para ele, mas o homem existe também pelas ideias e para elas. A idealidade (modo de existência necessário à ideia para traduzir o real) e o idealismo (possessão do real pela ideia), a racionalidade (diálogo entre a ideia e o real) e a racionalização (que impede o diálogo) são oriundos da mesma fonte. Entretanto, são as ideias que nos permitem conceber as carências e os perigos da ideia. Daí resulta este paradoxo: devemos manter uma luta crucial contra as ideias, mas somente podemos fazê-lo com a ajuda de ideias. A incerteza do conhecimento O conhecimento do conhecimento deve ser, para a educação, um princípio e uma necessidade permanentes. Existem condições bioantropológicas, socioculturais e noológicas que permitem interrogações sobre o mundo, o homem e sobre o próprio conhecimento. A procura da verdade pede a busca e a elaboração de metapontos de vista. Devemos jogar com as duplas possessões, a das ideias por nossa mente, a de nossa mente pelas ideias. Instaurar a convivialidade entre ideias e mitos. É preciso evitar idealismo e racionalização. Necessitamos de que se cristalize e se enraíze um paradigma que permita o conhecimento complexo. O problema cognitivo é de importância antropológica, política, social e histórica. As pessoas não podem mais ser brinquedos inconscientes de suas próprias mentiras. 

Capítulo II: OS PRINCÍPIOS DO CONHECIMENTO PERTINENTE O conhecimento fragmentado em disciplinas impede o vínculo entre as partes e a totalidade e deve ser substituído por um modo capaz de apreender os objetos em seu contexto, sua complexidade, seu conjunto. É necessário desenvolver a aptidão humana para situar as informações em um contexto de um mundo complexo. A contextualização é condição essencial da eficácia do funcionamento cognitivo. O conhecimento do mundo é uma necessidade intelectual e vital. É o problema atual de todo cidadão: como ter acesso às informações e poder articulá-las e organizá-las? Para tal, é necessária a reforma do pensamento, que deve ser paradigmática, e não programática. A esse problema confronta-se a educação do futuro, que existe entre os saberes desunidos, divididos, compartimentados e as realidades/ problemas multidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais e planetários. Para que o conhecimento seja pertinente, a educação deverá tornar evidente o contexto, o global; o multidimensional e o complexo. A educação do futuro deverá inspirar-se no princípio de Pascal: "sendo todas as coisas causadas e causadoras, mediatas e imediatas... considero ser impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tão pouco conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes". Unidades complexas, como o ser humano ou a sociedade, são multidimensionais. O ser humano é ao mesmo tempo biológico, psíquico, social, afetivo e racional. A sociedade comporta as dimensões histórica, econômica, sociológica, religiosa. Não se pode isolar uma parte do todo, mas as partes umas das outras. Complexus significa o que foi tecido junto. Há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo, e há um tecido interdependente, interativo e interretroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade. Em conseqüência, a educação deve promover a "inteligência geral" apta a referir-se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro da concepção global. A inteligência geral Quanto mais poderosa é a inteligência geral, maior é sua faculdade de tratar de problemas especiais e particulares. O conhecimento, ao buscar construir-se com referência ao contexto e ao global, deve mobilizar o que o conhecedor sabe do mundo. A educação deve favorecer a aptidão da mente para formular e resolver problemas essenciais e, de forma correlata, estimular o uso total da inteligência geral. Esse uso pede o exercício da curiosidade. As especializações disciplinares estão dispersas, desunidas. Os sistemas de ensino provocam a disjunção entre as humanidades e as ciências, assim como a separação das ciências em disciplinas hiper-especializadas, fechadas em si mesmas. Os problemas fundamentais e os problemas globais estão ausentes das ciências disciplinares. São salvaguardados apenas na filosofia, que, por sua vez, tornou-se um campo fechado sobre si mesmo. As mentes formadas pelas disciplinas perdem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes, do mesmo modo que para integrá-los em seus conjuntos naturais. O enfraquecimento da percepção do global conduz ao enfraquecimento da responsabilidade (cada qual tende a ser responsável apenas por sua tarefa especializada), assim como ao enfraquecimento da solidariedade (cada qual não mais sente os vínculos com seus concidadãos). A hiper-especialização impede a percepção do global (fragmentado em parcelas), a percepção do essencial, o tratamento dos problemas particulares (que só podem ser propostos e pensados em seu contexto) e o tratamento dos problemas essenciais (que nunca são parcelados). O princípio de redução leva a restringir o complexo ao simples. A lógica mecânica e determinista da máquina artificial conduz a excluir tudo aquilo que não seja quantificável e mensurável, eliminando o elemento humano do humano, isto é, paixões, emoções... Como a educação ensinou a compartimentar, e não a unir os conhecimentos, o conjunto deles constitui um quebra-cabeça ininteligível. A incapacidade de organizar o saber compartimentado conduz à atrofia da disposição mental natural de contextualizar e de globalizar. A inteligência compartimentada torna unidimensional o multidimensional. Por isso, incapaz de considerar o contexto e o complexo, a inteligência torna-se inconsciente e irresponsável. O problema dos humanos é beneficiar-se das técnicas, mas não se submeter a elas. Contudo as inteligências artificiais estão instaladas nas mentes sob forma de pensamento tecnocrático, pertinente para tudo que se relaciona com as máquinas artificiais e incapaz de compreender o vivo e o humano aos quais se aplica, acreditando-se o único racional. A pseudo-racionalidade, isto é, a racionalização abstrata e unidimensional, triunfa. Não se trata de abandonar o conhecimento das partes pelo conhecimento das totalidades, nem da análise pela síntese; é preciso conjugá-las. 
Capítulo III: ENSINAR A CONDIÇÃO HUMANA O ser humano é uma unidade complexa, que adquiriu um caráter desintegrado na educação por meio das disciplinas, tendo-se tornado impossível aprender o que significa ser humano. Desse modo, a condição humana deveria ser o objeto essencial de todo o ensino. É possível, com base nas disciplinas atuais, reconhecer a unidade e a complexidade humanas, reunindo e organizando conhecimentos dispersos nas ciências da natureza, nas ciências humanas, na literatura e na filosofia. Enraizamento/desenraizamento do ser humano. Devemos reconhecer nosso duplo enraizamento no cosmos físico e na esfera viva e, ao mesmo tempo, nosso desenraizamento propriamente humano. Estamos simultaneamente dentro e fora da natureza. Encontramo-nos no gigantesco cosmos em expansão, constituído de bilhões de estrelas e galáxias. Essas macromoléculas associaram-se em turbilhões dos quais um, cada vez mais rico em diversidade molecular, metamorfoseou-se em organização de novo tipo, em relação à organização estritamente química: uma auto-organização viva. Uma porção de substâncias físicas organizou-se de maneira termodinâmica sobre a Terra; por meio de imersão marinha, banhos químicos e descargas elétricas, adquiriu vida. A vida é solar: todos os seus elementos foram forjados em um sol e reunidos em um planeta. Nós, os seres vivos, somos um elemento da diáspora cósmica, algumas migalhas da existência solar, um diminuto broto da existência terrena. Pertencemos ao destino cósmico; estamos, porém, marginalizados: a Terra é o terceiro satélite de um sol errante entre bilhões de estrelas em uma galáxia periférica de um universo em expansão. Somos seres cósmicos e terrestres. Como seres vivos, dependemos, vitalmente, da biosfera terrestre. A importância da hominização é primordial à educação voltada para a condição humana, porque nos mostra como a animalidade e a humanidade constituem, juntas, a condição humana. O hominídeo humaniza-se. O conceito de homem tem duplo princípio: biofísico e psico-sócio-cultural, um remetendo ao outro. O circuito cérebro/mente/cultura O homem somente se realiza plenamente como ser humano pela cultura e na cultura. Não há cultura sem cérebro humano, nem mente sem cultura - é uma tríade entre cérebro/mente/cultura, em que cada um dos termos é necessário ao outro. A mente é o surgimento do cérebro que suscita a cultura, que não existiria sem o cérebro. O circuito razão/afeto/pulsão As relações entre as três instâncias são complementares e também antagônicas, comportando conflitos entre a pulsão, o coração e a razão. Correlativamente, a relação triúnica não obedece à hierarquia razão/afetividade/pulsão; há uma relação instável, permutante, rotativa entre estas três instâncias. A racionalidade não dispõe, portanto, de poder supremo; é concorrente e antagônica às outras instâncias de uma tríade inseparável. O circuito indivíduo/sociedade/espécie Os indivíduos são produtos do processo reprodutor da espécie humana, que deve ser ele próprio realizado por dois indivíduos. Tais interações produzem a sociedade, que testemunha o surgimento da cultura e retroage sobre os indivíduos pela cultura. A plenitude e a livre expressão dos indivíduos constituem nosso propósito ético e político, sem, entretanto, constituírem a própria finalidade da tríade indivíduo/sociedade/espécie. Todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana. Unitas multiplex: unidade e diversidade humana Cabe à educação do futuro cuidar para que a idéia de unidade da espécie humana não apague a idéia de diversidade e vice-versa. A educação deverá ilustrar o principio unidade/diversidade em todas as esferas. Na esfera individual, existe unidade/diversidade genética. Todo ser humano traz geneticamente em si a espécie humana e compreende geneticamente a própria singularidade anatômica, fisiológica. Há unidade/diversidade cerebral, mental, psicológica, afetiva, intelectual, subjetiva. Na esfera da sociedade, existe a unidade/diversidade das línguas (que nos torna gêmeos pela linguagem e separados pelas línguas), das organizações sociais e das culturas. A cultura é o conjunto dos saberes, fazeres, regras, normas, proibições, estratégias, crenças, idéias, valores, mitos que se transmite de geração em geração, reproduz-se em cada indivíduo, controla a existência da sociedade e mantém a complexidade psicológica e social. Assim, sempre existe a cultura nas culturas. Mas a cultura existe apenas por meio das culturas. O duplo fenômeno da unidade/diversidade das culturas é crucial. A cultura mantém a identidade humana naquilo que tem de específico; as culturas mantêm as identidades sociais naquilo que têm de específico. As culturas são aparentemente fechadas em si mesmas para salvaguardar sua identidade singular. Mas, na realidade, são também abertas: integram nelas saberes e técnicas, e também idéias, costumes, alimentos, indivíduos vindos de fora. O ser humano é complexo e traz em si caracteres antagonistas: sapiens e demens (sábio e louco), faber e ludens (trabalhador e lúdico), empiricus e imaginarius (empírico e imaginário), economicus e consumans (econômico e consumista), prosaicus e poeticus (prosaico e poético). O homem da racionalidade é também o da afetividade, do mito, do delírio (demens). O homem do trabalho é também o do jogo (ludens). O homem empírico é também o imaginário (imaginarius). O homem da economia é também o do consumismo (consumans). Existem, ao mesmo tempo, unidade e dualidade no ser humano; o desenvolvimento do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético. O ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida; nutre-se dos conhecimentos comprovados, mas também de ilusões e de quimeras. A loucura é também um problema central do homem e não apenas dejeto ou doença. A demência não levou a espécie humana à extinção (só as energias nucleares liberadas pela razão científica e só o desenvolvimento da racionalidade técnica dependente da biosfera poderão conduzi-la ao desaparecimento). Isso significa que os progressos da complexidade se fazem, ao mesmo tempo, com a loucura humana, apesar dela e por causa dela. A educação deveria mostrar e ilustrar o destino multifacetado do humano: o destino da espécie humana, o individual, o social, o histórico, todos entrelaçados e inseparáveis. Isso conduziria à tomada de conhecimento e de consciência da condição comum a todos os humanos, sobre nosso enraizamento como cidadãos da Terra... 
Capítulo IV: ENSINAR A IDENTIDADE TERRENA O destino planetário do gênero humano é outra realidade-chave até agora ignorada pela educação. Convém ensinar a história da era planetária, que se inicia com o estabelecimento da comunicação entre todos os continentes no século XVI, e mostrar como todas as partes do mundo se tornaram solidárias, sem, contudo, ocultar as opressões e a dominação que devastaram a humanidade e que ainda não desapareceram. Será preciso indicar a crise que marca o século XX, mostrando que todos os seres humanos, confrontados de agora em diante com os mesmos problemas de vida e morte, partilham um destino comum. Na era das telecomunicações, da informação, da Internet, estamos submersos na complexidade do mundo. As incontáveis informações sufocam as possibilidades de inteligibilidade. É a complexidade que apresenta problema. O planeta exige um pensamento policêntrico, capaz de apontar o universalismo, não abstraio, mas consciente da unidade/ diversidade da condição humana. A era planetária A história humana começou por uma diáspora que afetou todos os continentes não produziu nenhuma cisão genética: pigmeus, negros, amarelos, índios, brancos vêm da mesma espécie, possuem os mesmos caracteres fundamentais de humanidade. Contudo, levou à extraordinária diversidade de línguas, culturas, destinos. A riqueza da humanidade reside na sua diversidade criadora, mas a fonte de sua criatividade está em sua unidade geradora. A partir de 1492, Espanha, Portugal, França e Inglaterra se lançam à conquista do globo e, por meio de aventuras, guerras e morte, engendram a era planetária que, desde então, leva os cinco continentes à comunicação. A planetarização provoca, no século XX, duas guerras mundiais, duas crises econômicas mundiais e, após 1989, a generalização da economia liberal denominada mundialização. A economia mundial é cada vez mais interdependente: cada uma de suas partes tornou-se dependente do todo e, reciprocamente, o todo sofre as perturbações e imprevistos que afetam as partes. Tudo está instantaneamente presente, de um ponto do planeta ao outro, pela televisão, telefone, fax, Internet. O indivíduo recebe ou consome informações e substâncias oriundas de todo o universo. Enquanto o europeu está num circuito planetário de conforto, grande número de africanos, asiáticos e sul-americanos acha-se em um circuito de miséria. Sofrem, no cotidiano, as flutuações do mercado mundial, que afetam as ações das matérias-primas que seus países produzem. Foram expulsos do campo por causa dos processos mundializados, provenientes do Ocidente, como a monocultura industrial. Camponeses auto-suficientes tornaram-se suburbanos em busca de salário; suas necessidades agora são traduzidas em termos monetários. Dessa maneira, cada ser humano traz em si, sem saber, o planeta inteiro. A mundialização é ao mesmo tempo evidente, subconsciente e onipresente. Ela é unificadora, mas também conflituosa em sua essência. A unificação mundializante faz-se acompanhar cada vez mais pelo próprio negativo que ela suscita, pelo efeito contrário: a balcanização. Dessa maneira, o século XX criou e dividiu um tecido planetário único; seus fragmentos ficaram isolados, eriçados e intercombatentes. O século XX não saiu da idade de ferro planetária; mergulhou nela. O legado do século XX O século XX foi o da aliança entre duas barbáries: a primeira traz guerra, massacre, deportação, fanatismo. A segunda só conhece o cálculo, ignora o indivíduo, seu corpo, seus sentimentos, sua alma e multiplica o poderio da morte e da servidão técnico-industriais. As forças autodestrutivas foram particularmente ativadas: o vírus da AIDS, as drogas pesadas como a heroína. A possibilidade de extinção global de toda a humanidade pelas armas nucleares não foi dissipada; ao contrário, cresce com a disseminação e a miniaturização da bomba. O potencial de auto-aniquilamento acompanha a marcha da humanidade. Desde os anos 70, descobrimos que os dejetos, as emanações; as exalações de nosso desenvolvimento técnico-industrial urbano degradam a biosfera e ameaçam envenenar irremediavelmente o meio vivo ao qual pertencemos: a dominação desenfreada da natureza pela técnica conduz a humanidade ao suicídio. Se a modernidade é definida como fé incondicional no progresso, na tecnologia, na ciência, no desenvolvimento econômico, então esta modernidade está morta. A esperança A educação, que é ao mesmo tempo transmissão do antigo e abertura da mente para receber o novo, encontra-se no cerne dessa nova missão. O século XX deixou, como herança, contracorrentes regeneradoras, em reação às correntes dominantes. Devemos considerar: • a contracorrente ecológica que, com o crescimento das degradações e o surgimento de catástrofes técnicas/industriais, só tende a aumentar; • a contracorrente qualitativa que, em reação à invasão do quantitativo e da uniformização generalizada, apega-se à qualidade em todos os campos, a começar pela qualidade de vida; • a contracorrente de resistência à vida prosaica puramente utilitária, que se manifesta pela busca da vida poética, dedicada ao amor, à admiração, à paixão, à festa; • a contracorrente de resistência à primazia do consumo padronizado, que se manifesta pela busca da intensidade vivida ("consumismo") e pela busca da frugalidade e da temperança; • a contracorrente de emancipação em relação à tirania onipresente do dinheiro, que, ainda tímida, busca contrabalançar-se por relações humanas e solidárias, fazendo retroceder o reino do lucro; • a contracorrente em reação ao desencadeamento da violência, que, também tímida, nutre éticas de pacificação das almas e das mentes. Todas essas correntes prometem intensificar-se ao longo do século XXI e constituir focos de transformação. Mas a verdadeira transformação só poderia ocorrer com a intertransformação de todos, operando assim uma transformação global, que retroagiria sobre as transformações individuais. Uma das condições fundamentais para a evolução positiva seria as forças emancipadoras inerentes à ciência e à técnica poderem superar as forças de morte e de servidão. As possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento das biotecnologias são igualmente prodigiosas para o melhor e para o pior. Aquilo que porta o pior perigo traz também as melhores esperanças: é a própria mente humana, e é por isso que o problema da reforma do pensamento tornou-se vital. A identidade e a consciência terrena A união planetária pede a consciência e um sentimento de pertencimento mútuo que nos una à Terra, considerada como primeira e última pátria. É necessário aprender a estar no planeta, o que significa aprender a viver, a dividir, a comunicar, a comungar; não mais somente pertencer a uma cultura, mas também ser terrenos. Devemos dedicar-nos não só a dominar, mas a condicionar, melhorar, compreender. Devemos inscrever em nós: • a consciência antropológica, que reconhece a unidade na diversidade; • a consciência ecológica, isto é, a consciência de habitar, com todos os seres mortais, a mesma esfera viva (biosfera); • a consciência cívica terrena, isto é, da responsabilidade e da solidariedade para com os filhos da Terra; • a consciência espiritual da condição humana que decorre do exercício complexo do pensamento, e que permite criticar-nos mutuamente, autocriticar-nos e compreender-nos mutuamente. De toda maneira, a era de fecundidade dos Estados-nações, dotados de poder absoluto está encerrada. O mundo confederado deve ser policêntrico e acêntrico, não apenas política, mas também culturalmente. O Ocidente que se provincializa sente a necessidade do Oriente, enquanto o Oriente quer permanecer ocidentalizando-se. A unidade, a mestiçagem e a diversidade devem desenvolver-se contra a homogeneização e o fechamento. O imperativo antropológico impõe-se salvar a unidade e a diversidade humanas. Desenvolver identidades concêntricas e plurais: de etnia, de pátria, de comunidade, de civilização, enfim, de cidadãos terrestres. A educação do futuro deverá ensinar a ética da compreensão planetária. 

Capítulo V: ENFRENTAR AS INCERTEZAS O século XX descobriu a imprevisibilidade do futuro. O abandono das concepções deterministas da história humana que acreditavam poder predizê-lo, o estudo dos grandes acontecimentos e desastres, o caráter doravante desconhecido da aventura humana devem incitar as mentes para esperar e enfrentar o inesperado. A educação deveria incluir o ensino das incertezas que surgiram nas ciências físicas (microfísicas, termodinâmica, cosmologia), nas ciências da evolução biológica e nas ciências históricas. É preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas em meio a arquipélagos de certeza. O universo é o jogo entre a ordem, a desordem e a organização. A Terra, provavelmente, em sua origem se auto-organizou na dialógica entre ordem/desordem/organização, erupções e terremotos. A história avança, não como um rio, mas por desvios que decorrem de inovações ou de criações internas, de acontecimentos ou acidentes externos. O futuro chama-se incerteza. Toda evolução é fruto do desvio bem-sucedido, cujo desenvolvimento transforma o sistema em que nasceu: desorganiza, reorganizando-o. Não existem apenas inovações e criações. Existem também destruições. Estas podem trazer novos desenvolvimentos (avanços da técnica, da indústria e do capitalismo levaram à destruição de civilizações tradicionais, por exemplo). A história obedece, ao mesmo tempo, a determinismos e a acasos. Ela tem sempre duas faces opostas: civilização/barbárie, criação/destruição, gênese/morte. Os despotismos e totalitarismos sabem que os indivíduos diferentes constituem um desvio potencial; por isso eles os eliminam e aniquilam. É preciso aprender a enfrentar a incerteza, já que vivemos em uma época em que os valores são ambivalentes e tudo é ligado. É por isso que a educação do futuro deve voltar-se para as incertezas ligadas ao conhecimento, pois existem princípios: • de incerteza cérebro-mental, que decorrem do processo de tradução/ reconstrução próprio a todo conhecimento. • de incerteza lógica: como dizia Pascal, "nem a contradição é sinal de falsidade, nem a não-contradição é sinal de verdade". • de incerteza racional, já que a racionalidade, se não mantém autocrítica vigilante, cai na racionalização. • da incerteza psicológica: é impossível ser totalmente consciente do que se passa em nossa mente, que conserva algo de fundamentalmente inconsciente. Existe, portanto, a dificuldade do auto-exame crítico, para o qual nossa sinceridade não é garantia de certeza, existindo limites para qualquer autoconhecimento. As ideias e teorias podem traduzir a realidade de maneira errônea. Nossa realidade não é outra senão nossa ideia da realidade. Importa compreender a incerteza do real. É preciso saber interpretar a realidade antes de reconhecer onde está o realismo. O conhecimento é uma aventura incerta, que comporta em si mesmo o risco de ilusão e de erro. É nas certezas doutrinárias, dogmáticas e intolerantes que se encontram as piores ilusões. A ação é decisão, escolha, mas também aposta. A ecologia da ação deve levar em consideração a complexidade que ela supõe, através do aleatório, da iniciativa, do imprevisto. Ela compreende três princípios: o circuito risco/precaução; o circuito fins/meios e o circuito ação/ contexto. Toda ação escapa à vontade de seu autor quando entra no jogo das inter-retro-ações do meio em que intervém. A ação pode ter três tipos de conseqüências: o efeito perverso, a inanição da inovação e a colocação das conquistas em perigo. A imprevisibilidade em longo prazo Os efeitos de uma ação em longo prazo são imprevisíveis. Nenhuma ação está segura de ocorrer no sentido de sua intenção. Há dois meios para enfrentar tal incerteza: • uma vez efetuada a escolha, a consciência da incerteza torna-se consciência de uma aposta. A noção de aposta deve ser generalizada quanto a qualquer fé: a fé em um mundo melhor, na justiça etc.; • a estratégia deve prevalecer sobre o programa (que estabelece uma seqüência de ações, que devem ser executadas sem variação em um ambiente estável). Se houver modificação das condições externas, bloqueia-se o programa. A estratégia elabora um cenário de ação que examina as certezas e as incertezas da situação. Tudo que comporta oportunidade comporta risco, e o pensamento deve reconhecer as oportunidades de riscos como os riscos das oportunidades. 

Capítulo VI: ENSINAR A COMPREENSÃO A compreensão é meio e fim da comunicação humana. Entretanto, a educação para a compreensão está ausente do ensino. O planeta necessita, em todos os sentidos, de compreensão mútua. O desenvolvimento desta qualidade pede a reforma das mentalidades. Essa deve ser a obra para a educação do futuro. A compreensão mútua entre os seres humanos, quer próximos ou estranhos, é, daqui para frente, vital para que as relações humanas saiam de seu estado bárbaro de incompreensão. Daí decorre a necessidade de estudar a incompreensão a partir de suas raízes, modalidades e efeitos. Esse estudo é necessário porque enfocaria não os sintomas, mas as causas do racismo, da xenofobia, do desprezo. Constituiria, ao mesmo tempo, uma das bases mais seguras da educação para a paz, à qual estamos ligados por essência e vocação. Educar para compreender uma disciplina é uma coisa; educar para compreensão humana é outra - ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade. O problema da compreensão é duplamente polarizado: • Um pólo, agora planetário, é o da compreensão entre humanos, os encontros e relações que se multiplicam entre pessoas, culturas, povos de diferentes origens culturais. • Um pólo individual é o das relações particulares entre próximos. Estas estão cada vez mais ameaçadas pela incompreensão (como será indicado mais adiante). As duas compreensões A comunicação não garante a compreensão. A informação, se bem transmitida e compreendida, traz inteligibilidade, condição necessária, mas não suficiente para a compreensão. Há duas formas de compreensão: a intelectual ou objetiva e a humana intersubjetiva. A compreensão intelectual passa pela inteligibilidade e pela explicação. Explicar é considerar o que é preciso conhecer como objeto e aplicar-lhe todos os meios objetivos de conhecimento. A explicação é necessária para a compreensão intelectual, mas é insuficiente para a compreensão humana. Esta comporta um conhecimento de sujeito a sujeito e inclui, necessariamente, um processo de empatia, de identificação e de projeção. Sempre intersubjetiva, a compreensão pede abertura, simpatia e generosidade. Educação para os obstáculos à compreensão A compreensão do sentido das palavras de outro, de suas idéias, de sua visão do mundo está sempre ameaçada por todos os lados: • Existe o "ruído" que parasita a transmissão da informação, cria o mal-entendido ou não-entendido. • Existe a polissemia de uma noção que, enunciada em um sentido, é entendida de outra forma; assim, a palavra "cultura", verdadeiro camaleão conceptual, pode significar tudo que não é naturalmente inato. • Existe a ignorância dos ritos e costumes do outro. • Existe a incompreensão dos valores de outra cultura. • Existe a incompreensão dos imperativos éticos próprios a uma cultura. • Existe a impossibilidade de compreender as ideias ou os argumentos de outra visão do mundo. • Existe a impossibilidade de compreensão de uma estrutura mental em relação à outra. Egocentrismo, etnocentrismo e sociocentrismo A incompreensão de si é fonte importante da incompreensão de outro. Mascaram-se as próprias carências e fraquezas, o que nos torna implacáveis com as carências e fraquezas dos outros. O egocentrismo amplia-se com o afrouxamento da disciplina e das obrigações que, anteriormente, levavam à renúncia aos desejos individuais, quando se opunham à vontade dos pais ou cônjuges. Hoje, a incompreensão deteriora as relações. O mundo dos intelectuais, escritores ou universitários, que deveria ser mais compreensivo, é o mais gangrenado sob o efeito da hipertrofia do ego, nutrido pela necessidade de consagração e de glória. O etnocentrismo e o sociocentrismo nutrem xenofobias e racismos e podem até despojar o estrangeiro da qualidade de ser humano. Por isso, a verdadeira luta contra os racismos se operaria mais contra suas raízes ,ego-sócio-cêntricas do que contra seus sintomas. A ética da compreensão A ética da compreensão é a arte de viver que nos demanda compreender de modo desinteressado, com grande esforço, pois não pode esperar nenhuma reciprocidade. E compreender a incompreensão - se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no caminho da humanização das relações humanas. O que favorece a compreensão é: • O "bem pensar": apreender o texto e o contexto, o ser e seu meio, o local e o global. • A introspecção (auto-exame crítico permanente). • A consciência da complexidade humana: não se deve reduzir o ser à menor parte dele próprio, nem mesmo ao pior fragmento de seu passado. • A abertura subjetiva (simpática) em relação ao outro. • A interiorização da tolerância. • Compreensão, ética e cultura planetárias: a mundialização deveria estar a serviço do gênero humano, através da compreensão, da solidariedade intelectual e moral da humanidade. Dada a importância da educação para a compreensão, o desenvolvimento da compreensão necessita da reforma planetária das mentalidades que deve ser a tarefa da educação do futuro. 

Capítulo VII - A ÉTICA DO GÊNERO HUMANO A concepção do gênero humano comporta a tríade indivíduo/sociedade/ espécie. A cultura, no sentido genérico, emerge dessas interações, reúne-as e confere-lhes valor. Assim, essa tríade é inseparável e seus elementos são co-produtores um do outro; cada um deles é, ao mesmo tempo,meio e fim dos outros. A antropo-ética (ética propriamente humana) deve ser considerada como a ética da qual emerge a consciência e o espírito propriamente humanos. É a base para ensinar a ética do futuro. Supõe a decisão consciente e esclarecida de: • assumir a condição humana indivíduo/sociedade/espécie na complexidade do ser; • alcançar a humanidade na consciência pessoal; • assumir o destino humano em suas antinomias e plenitude; A antropo-ética instrui-nos a assumir a missão antropológica do milênio: • trabalhar para a humanização da humanidade; • efetuar a dupla pilotagem do planeta: obedecer à vida, guiar a vida; • alcançar a unidade planetária na diversidade; • respeitar no outro, ao mesmo tempo, a diferença e a identidade quanto a si mesmo; • desenvolver a ética da solidariedade e da compreensão; • ensinar a ética do gênero humano. A antropo-ética compreende a esperança na completude da humanidade, como consciência e cidadania planetária, mas também aposta no incerto. Ela é consciência individual além da individualidade. O circuito indivíduo/sociedade: ensinar a democracia A democracia favorece a relação rica e complexa entre indivíduo e sociedade. Fundamenta-se no controle da máquina do poder pelos controlados. É a regeneração contínua de uma cadeia complexa e retroativa: os cidadãos produzem a democracia que produz cidadãos. A soberania do povo cidadão comporta, ao mesmo tempo, a auto-limitação desta soberania pela obediência às leis e a transferência da soberania aos eleitos. Necessita do consenso da maioria e do respeito às regras democráticas. Contudo, necessita de diversidade. A experiência do totalitarismo enfatizou o caráter-chave da democracia: seu elo vital com a diversidade. A democracia constitui, portanto, um sistema político complexo, no sentido de que vive de pluralidade, concorrências e antagonismo, permanecendo como comunidade. O desenvolvimento das complexidades políticas, econômicas e sociais nutre os avanços da individualidade. Esta se afirma em seus direitos (do homem e do cidadão) e adquire liberdades existenciais (escolha autônoma do cônjuge, da residência, do lazer). A democracia une, de modo complementar, termos antagônicos: consenso/ conflito, liberdade/fraternidade, comunidade nacional/antagonismos sociais e ideológicos. Enfim, ela depende das condições que dependem de seu exercício (espírito cívico, aceitação da regra do jogo democrático). As democracias do século XXI serão cada vez mais confrontadas ao gigantesco problema decorrente do desenvolvimento da enorme máquina em que ciência, técnica e burocracia estão intimamente associadas. Nessas condições, o cidadão tem o direito de adquirir saber especializado, mas é despojado de qualquer ponto de vista global e pertinente. Quanto mais a política se torna técnica, mais a competência democrática regride. Impõe-se às sociedades, reputadas como democráticas, a necessidade de regenerar a democracia, enquanto que, em grande parte do mundo, se apresenta o problema de gerar democracia, ao mesmo tempo em que as necessidades planetárias nos reclamam gerar nova possibilidade democrática nesta escala. A regeneração democrática supõe a regeneração do civismo, a regeneração do civismo supõe a regeneração da solidariedade e da responsabilidade, ou seja, o desenvolvimento da antropo-ética. O circuito indivíduo/espécie: ensinar a cidadania terrestre A partir do século XX, a comunidade de destino terrestre impõe de modo vital a solidariedade: "Sou homem, nada do que é humano me é estranho". A humanidade como destino planetário A comunidade de destino planetário permite assumir e cumprir esta parte de antropo-ética, que se refere à relação entre indivíduo singular e espécie humana como todo. A humanidade está enraizada em uma "pátria", a terra. Sós, e em conjunto com a política do homem, a política de civilização, a reforma do pensamento, a antropo-ética, o verdadeiro humanismo, a consciência da Terra-Pátria reduziriam a ignomínia no mundo. Não conhecemos o caminho: "El camino se hace al andar". 

Síntese elaborada por Carlos R. Paiva: Publicada na Revista de Educação nº 15

PEDAGOGIA DA AUTONOMIA: Saberes Necessários à Prática Docente Paulo Freire



Capítulo l - NÃO HÁ DOCÊNCIA SEM DISCÊNCIA Ensinar não é transferir conhecimentos e conteúdos, nem formar é a ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam, e seus sujeitos, apesar das diferenças, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Ensinar exige rigorosidade metodológica Ensinar não se esgota no tratamento do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito, mas se alonga à produção das condições em que aprender criticamente é possível. E estas condições exigem a presença de educadores e de educandos criadores, investigadores, inquietos, curiosos, humildes e persistentes. Faz parte das condições em que aprender criticamente é possível a pressuposição, por parte dos educandos, de que o educador já teve ou continua tendo experiência da produção de saberes, e que estes, não podem ser simplesmente transferidos a eles. Pelo contrário, nas condições de verdadeira aprendizagem, tanto educandos quanto educadores transformam-se em sujeitos do processo de aprendizagem. Só assim podemos falar realmente de saber ensinado, em que o objeto ensinado é aprendido na sua razão de ser. Percebe-se, assim, a importância do papel do educador, com a certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos, mas também ensinar a pensar certo - um professor desafiador, crítico. Ensinar exige pesquisa Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Hoje se fala muito no professor pesquisador, mas isto não é uma qualidade, pois faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. Precisamos que o professor se perceba e se assuma como pesquisador. Pensar certo é uma exigência que os momentos do ciclo gnosiológico impõem à curiosidade que, tornando-se mais e mais metodologicamente rigorosa, transforma-se no que Paulo Freire chama de "curiosidade epistemológica". Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos A escola deve respeitar os saberes dos educandos – socialmente construídos na prática comunitária - discutindo, também, com os alunos, a razão de ser de alguns deles em relação ao ensino dos conteúdos. Por que não aproveitar a experiência dos alunos que vivem em áreas descuidadas pelo poder público para discutir a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde? Por que não associar as disciplinas estudadas à realidade concreta, em que a violência é a constante e a convivência das pessoas com a morte é muito maior do que com a vida? Ensinar exige criticidade A superação, ao invés da ruptura, se dá na medida em que a curiosidade ingênua, associada ao saber comum, se criticiza, aproximando-se de forma cada vez mais metodologicamente rigorosa do objeto cognoscível, tornando-se curiosidade epistemológica. Muda de qualidade, mas não de essência, e essa mudança não se dá automaticamente. Essa é uma das principais tarefas do educador progressista - o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil. Ensinar exige estética e ética A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ser feita sem uma rigorosa formação ética e estética. Decência e boniteza andam de mãos dadas. Mulheres e homens, seres histórico-sociais, tornamo-nos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper. Por tudo isso nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os seres humanos longe da ética. Quanto mais fora dela, maior a transgressão. Ensinar exige a corporificação das palavras pelo exemplo Quem pensa certo está cansado de saber que palavras sem exemplo pouco ou nada valem. Pensar certo é fazer certo (agir de acordo com o que pensa). Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal, que o re-diz em lugar de desdizê-lo. Não é possível ao professor pensar que pensa certo (de forma progressista), e, ao mesmo tempo, perguntar ao aluno se "sabe com quem está falando". Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação. É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, assim como critério de recusa ao velho não é o cronológico. O velho que preserva sua validade encarna uma tradição ou marca uma presença no tempo continua novo. Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa de raças, de classes, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. É fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que, iluminados intelectuais, escrevem desde o centro do poder. Pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem de ser produzido pelo próprio aprendiz, em comunhão com o professor formador. É preciso possibilitar que a curiosidade ingênua, através da reflexão sobre a prática, vá tornando-se crítica. Na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática. Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural A questão da identidade cultural, com sua dimensão individual e da classe dos educandos, cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa progressista, é problema que não pode ser desprezado. Tem a ver diretamente com a assunção de nós por nós mesmos. É isto que o puro treinamento do professor não faz, perdendo-se na estreita e pragmática visão do processo. 

Capítulo 2 - ENSINAR NÃO É TRANSFERIR CONHECIMENTO Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria construção. Quando o educador entra em uma sala de aula, deve estar aberto a indagações, curiosidade e inibições dos alunos: um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tem - a de ensinar e não a de transferir conhecimento. Pensar certo é uma postura exigente, difícil, às vezes penosa, que temos de assumir diante dos outros e com os outros, em face do mundo e dos fatos, ante nós mesmos. É difícil, entre outras coisas, pela vigilância constante que temos de exercer sobre nós mesmos para evitar os simplismos, as facilidades, as incoerências grosseiras. É difícil porque nem sempre temos o valor indispensável para não permitir que a raiva que podemos ter de alguém vire raivosidade, gerando um pensar errado e falso. É cansativo, por exemplo, viver a humildade, condição sine qua non do pensar certo, que nos faz proclamar o nosso próprio equívoco, que nos faz reconhecer e anunciar a superação que sofremos. Sem rigorosidade metódica não há pensar certo. Ensinar exige consciência do inacabamento. Na verdade, a inconclusão do ser é própria de sua experiência vital. Onde há vida, há inconclusão, embora esta só seja consciente entre homens e mulheres. A invenção da existência envolve necessariamente a linguagem, a cultura, a comunicação em níveis mais profundos e complexos do que ocorria e ocorre no domínio da vida, a espiritualização do mundo, a possibilidade não só de embelezar, mas também de enfear o mundo; tudo isso inscreveria mulheres e homens como seres éticos. Só os seres que se tornaram éticos podem romper com a ética. É necessário insistir na problematização do futuro e recusar sua inexorabilidade. Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado "Gosto de ser gente, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado... Afinal, minha presença no mundo não é a de quem se adapta, mas a de quem nele se insere". E a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas também sujeito da história. Histórico-sócio-culturais, tornamo-nos seres em quem a curiosidade, ultrapassando os limites que lhe são peculiares no domínio vital, torna-se fundante da produção do conhecimento. Mais ainda, a curiosidade é já o conhecimento. Como a linguagem que anima a curiosidade e com ela se anima, é também conhecimento e não só expressão dele. Na verdade, seria uma contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, o ser humano não se inserisse em tal movimento. É neste sentido que, para mulheres e homens, estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros. É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. O ideal é que, na experiência educativa, educandos e educadores, juntos, transformem este e outros saberes em sabedoria. Algo que não é estranho a nós, educadores. Ensinar exige respeito à autonomia do ser educando O professor, ao desrespeitar a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, ao ironizar o aluno, minimizá-lo, mandar que "ele se ponha em seu lugar" ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, ao se eximir do cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, ao se furtar do dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência. É neste sentido que o professor autoritário afoga a liberdade do educando, amesquinhando o seu direito de ser curioso e inquieto. Qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever, por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar. A beleza de ser gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar. Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do educando exige de mim uma prática em tudo coerente com este saber. Ensinar exige bom senso O exercício do bom senso, com o qual só temos a ganhar, se faz no corpo da curiosidade. Neste sentido, quanto mais colocamos em prática, de forma metódica, a nossa capacidade de indagar, de comparar, de duvidar, de aferir, tanto mais eficazmente curiosos nos podemos tornar e mais crítico se torna o nosso bom senso. O exercício do bom senso vai superando o que há nele de instintivo na avaliação que fazemos dos fatos e dos acontecimentos em que nos envolvemos. O meu bom senso não me diz o que é, mas deixa claro que há algo que precisa ser sabido. É ele que, em primeiro lugar, me diz não ser possível o respeito aos educandos, se não se levar em consideração as condições em que eles vêm existindo, e os conhecimentos experienciais com que chegam à escola. Isto exige de mim uma reflexão crítica permanente sobre minha prática. O ideal é que se invente uma forma pela qual os educandos possam participar da avaliação. E que o trabalho do professor deve ser com os alunos e não consigo mesmo. O professor tem o dever de realizar sua tarefa docente. Para isso, precisa de condições favoráveis, sem as quais se move menos eficazmente no espaço pedagógico. O desrespeito a este espaço é uma ofensa aos educandos, aos educadores e à prática pedagógica. Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores Como ser educador sem aprender a conviver com os diferentes? Como posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar o meu desconhecimento? A luta dos professores em defesa de seus direitos e de sua dignidade deve ser entendida como um momento importante de sua prática docente, enquanto prática ética. Ainda que a prática pedagógica seja tratada com desprezo, não tenho por que desamá-la e aos educandos. Não tenho por que exercê-la mal. Minha resposta à ofensa à educação é a luta política consciente, crítica e organizada dos professores. Os órgãos de classe deveriam priorizar o empenho de formação permanente dos quadros do magistério como tarefa altamente política, e reinventar a forma de lutar. Ensinar exige apreensão da realidade Como professor, preciso conhecer as diferentes dimensões que caracterizam a essência da minha prática. O melhor ponto de partida para estas reflexões é a inconclusão do ser humano. Aí radica a nossa educabilidade, bem como a nossa inserção num permanente movimento de busca. A nossa capacidade de aprender, de que decorre a de ensinar, implica a nossa habilidade de apreender a substantividade de um objeto. Somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de aprender. Por isso aprender é uma aventura criadora, muito mais rica do que meramente repetir a lição dada. Aprender é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito. Toda prática educativa demanda: - a existência de sujeitos - um que, ensinando, aprende, e outro que, aprendendo, ensina (daí seu cunho gnosiológico); - a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; - o uso de métodos, de técnicas, de materiais. Esta prática também implica, em função de seu caráter diretivo, objetivos, sonhos, utopias, ideais. Daí sua politicidade, daí não ser neutra, ser artística e moral. Exige uma competência geral, um saber de sua natureza e saberes especiais, ligados à atividade docente. Como professor, se a minha opção é progressista e sou coerente com ela, meu papel é contribuir para que o educando seja o artífice de sua formação. Devo estar atento à difícil caminhada da heteronomia para a autonomia. "É assim que venho tentando ser professor, assumindo minhas convicções, disponível ao saber, sensível à boniteza da prática educativa, instigado por seus desafios..." Ensinar exige alegria e esperança O meu envolvimento com a prática educativa jamais deixou de ser feito com alegria, o que não significa dizer que tenha podido criá-la nos educandos. Parece-me uma contradição que uma pessoa que não teme a novidade, que se sente mal com as injustiças, que se ofende com as discriminações, que luta contra a impunidade, que recusa o fatalismo cínico e imobilizante não seja criticamente esperançosa. Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível A realidade não é inexoravelmente esta. E esta agora, e para que seja outra, precisamos lutar, viver a história como tempo de possibilidade, e não de determinação. O amanhã não é algo pré-dado, mas um desafio. Não posso, por isso, cruzar os braços. Esse é, aliás, um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem pretende que sua presença se torne convivência. O mundo não é. O mundo está sendo. O meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Constato, não para me adaptar, mas para mudar. No fundo, as resistências orgânicas e culturais são manhas necessárias à sobrevivência física e cultural dos oprimidos. É preciso, porém, que tenhamos na resistência fundamentos para a nossa rebeldia e não para a nossa resignação em face das ofensas. Não é na resignação que nos afirmamos, mas na rebeldia em face das injustiças. A rebeldia é ponto de partida, é deflagração da justa ira, mas não é suficiente. A rebeldia, enquanto denúncia, precisa se alongar até uma posição mais radical e crítica, a revolucionária, fundamentalmente anunciadora. Mudar é difícil, mas é possível. Ensinar exige curiosidade Como professor, devo saber que, sem a curiosidade que me move, não aprendo nem ensino. A construção do conhecimento implica o exercício da curiosidade, o estímulo à pergunta, a reflexão crítica sobre a própria pergunta. O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada. A dialogicidade, no entanto, não nega a validade de momentos explicativos, narrativos. O bom professor faz da aula um desafio. Seus alunos cansam, não dormem. Um dos saberes fundamentais à prática educativo-crítica é o que me adverte da necessária promoção da curiosidade espontânea para a curiosidade epistemológica. Resultado do equilíbrio entre autoridade e liberdade, a disciplina implica o respeito de uma pela outra, expresso na assunção que ambas fazem de limites que não podem ser transgredidos.

Capítulo 3 - ENSINAR É UMA ESPECIFICIDADE HUMANA Creio que uma das qualidades essenciais que a autoridade docente democrática deve revelar em suas relações com as liberdades dos alunos é a segurança em si mesma. É a segurança que se expressa na firmeza com que atua, com que decide, com que respeita as liberdades, com que discute suas próprias posições, com que aceita rever-se. Ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade - A segurança com que a autoridade docente se move implica uma outra, fundada na sua competência profissional. Nenhuma autoridade docente se exerce ausente desta competência. O professor que não leva a sério sua formação, que não estuda, que não se esforça para estar à altura de sua tarefa não tem força moral para coordenar as atividades de sua classe. A incompetência profissional desqualifica a autoridade do professor. Outra qualidade indispensável à autoridade, em suas relações com a liberdade, é a generosidade. Não há nada que inferiorize mais a tarefa formadora da autoridade do que a mesquinhez, a arrogância ao julgar os outros e a indulgência ao se julgar, ou aos seus. A arrogância que nega a generosidade nega também a humildade. O clima de respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes, generosas, em que a autoridade docente e as liberdades dos alunos se assumem eticamente, autentica o caráter formador do espaço pedagógico. A autoridade, coerentemente democrática, está convicta de que a disciplina verdadeira não existe na estagnação, no silêncio dos silenciados, mas no alvoroço dos inquietos, na dúvida que instiga, na esperança que desperta. Um esforço sempre presente à prática da autoridade coerentemente democrática é o que a torna quase escrava de um sonho fundamental - o de persuadir ou convencer a liberdade para a construção da própria autonomia, ainda que reelaborando materiais vindos de fora de si. É com a autonomia, penosamente construída e fundada na responsabilidade, que a liberdade vai preenchendo o espaço antes habitado pela dependência. O fundamental no aprendizado do conteúdo é a construção da responsabilidade da liberdade que se assume. O essencial nas relações entre autoridade e liberdade é a reinvenção do ser humano no aprendizado de sua autonomia. Nunca me foi possível separar dois momentos - o ensino dos conteúdos da formação ética dos educandos. O saber desta impossibilidade é fundamental à prática docente. Quanto mais penso sobre a prática educativa, reconhecendo a responsabilidade que ela exige de nós, mais me convenço do nosso dever de lutar para que ela seja realmente respeitada: Ensinar exige comprometimento Não posso ser professor sem me pôr diante dos alunos, sem revelar com facilidade ou relutância minha maneira de ser, de pensar politicamente. Não posso escapar à apreciação dos alunos. E a maneira como eles me percebem tem importância capital para o meu desempenho. Daí, então, que uma de minhas preocupações centrais deva ser a de procurar a aproximação cada vez maior entre o que digo e o que faço, entre o que pareço ser e o que realmente estou sendo. Isto aumenta em mim os cuidados com o meu desempenho. Se a minha opção é democrática, progressista, não posso ter uma prática reacionária, autoritária, elitista. Minha presença de professor é, em si, política. Enquanto presença, não posso ser uma omissão, mas um sujeito de opções. Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de decidir, de optar e de romper, minha capacidade de fazer justiça, de não falhar à verdade. Ético, por isso mesmo, tem que ser o meu testemunho. Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo Outro saber de que 'não posso duvidar na minha prática educativo-crítica é que, como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção esta que, além do conhecimento dos conteúdos, bem ou mal ensinados e/ou aprendidos, implica tanto o esforço da reprodução da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento. Nem somos seres simplesmente determinados nem tampouco livres de condicionamentos genéticos, culturais, sociais, históricos, de classe, de gênero, que nos marcam e a que nos achamos referidos. Continuo aberto à advertência de Marx, a da necessária radicalidade, que me faz sempre desperto a tudo o que diz respeito à defesa dos interesses humanos. Interesses superiores aos de grupos ou de classes de pessoas. Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição, uma tomada de posição, uma ruptura. Exige que eu escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê. Não posso ser professor a favor simplesmente da Humanidade, frase de uma vaguidade demasiado contrastante com a concretude da prática educativa. Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais, contra a ordem vigente que inventou a aberração da miséria na fartura. Sou professor a favor da esperança que me anima, apesar de tudo. Contra o desengano que consome e imobiliza e a favor da boniteza de minha própria prática. Tão importante quanto o ensino dos conteúdos é a minha coerência na classe. A coerência entre o que digo, o que escrevo e o que faço. Ensinar exige liberdade e autoridade O problema que se coloca para o educador democrático é como trabalhar no sentido de fazer possível que a necessidade do limite seja assumida eticamente pela liberdade. Sem os limites, a liberdade se perverte em licença e a autoridade em autoritarismo. Por outro lado, faz parte do aprendizado a assunção das conseqüências do ato de decidir. Não há decisão que não seja seguida de efeitos esperados, pouco esperados ou inesperados. Por isso a decisão é um processo responsável. É decidindo que se aprende a decidir. Não posso aprender a ser eu mesmo se não decido nunca, porque há sempre a sabedoria e a sensatez de meu pai e de minha mãe a decidir por mim. Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se construindo na experiência. Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de repente. A gente vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia é um processo, não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, ou seja, que respeitam a liberdade. Ensinar exige tomada consciente de decisões Voltemos à questão central desta parte do texto - a educação, especificidade humana, como um ato de intervenção no mundo. Quando falo em educação como intervenção me refiro tanto a que aspira a mudanças radicais na sociedade, no campo da economia, das relações humanas, da propriedade, do direito ao trabalho, à terra, à educação, à saúde, quanto a que, reacionariamente, pretende imobilizar a História e manter a ordem injusta. E que dizer de educadores que se dizem progressistas, mas de prática pedagógica-política eminentemente autoritária? A raiz mais profunda da politicidade da educação se acha na educabilidade do ser humano, que se funda em sua natureza inacabada e da qual se tornou consciente. Inacabado e consciente disso,necessariamente o ser humano se faria um ser ético, um ser de opção, de decisão. Um ser ligado a interesses e em relação aos quais tanto pode manter-se fiel à ética quanto pode transgredi-la. Se a educação não pode tudo, pode alguma coisa fundamental. Se a educação não é a chave das mudanças, não é também simplesmente reprodutora da ideologia dominante. O que quero dizer é que a educação nem é uma força imbatível a serviço da transformação da sociedade nem tampouco é a perpetuação do status quo. Ensinar exige saber escutar Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da Verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos & falar com eles. Os sistemas de avaliação pedagógica de alunos e de professores vêm se assumindo cada vez mais como discursos verticais, de cima para baixo, mas insistindo em passar por democráticos. A questão que se coloca a nós é lutar em favor da compreensão e da prática da avaliação, enquanto instrumento de apreciação do que fazer, de sujeitos críticos a serviço, por isso mesmo, da libertação e não da domesticação. Avaliação em que se estimule o falar a como caminho para o falar com. Quem tem o que dizer, tem igualmente o direito e o dever de dizê-lo. É preciso, porém, que o sujeito saiba não ser o único a ter algo a dizer. Mais ainda, que esse algo, por mais importante que seja, não é a verdade alvissareira por todos esperada. Por isso é que acrescento, quem tem o que dizer deve assumir o dever de motivar, de desafiar quem escuta, para que este diga, fale, responda. É preciso enfatizar - ensinar não é transferir a inteligência do objeto ao educando, mas instigá-lo no sentido de que, como sujeito cognoscente, torne-se capaz de inteligir e comunicar o inteligido. É neste sentido que se impõe a mim escutar o educando em suas dúvidas, em seus receios, em sua incompetência provisória. E ao escutá-lo, aprendo a falar com ele. Aceitar e respeitar a diferença é uma das virtudes sem a qual a escuta não pode acontecer. Tarefa essencial da escola, como centro de produção sistemática de conhecimento, é trabalhar criticamente a i das coisas e dos fatos e a sua comunicabilidade. Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica Saber igualmente fundamental à prática educativa do professor é o que diz respeito à força, às vezes, maior do que pensamos da ideologia. É o que nos adverte de suas manhas, das armadilhas em que nos faz cair. A ideologia tem a ver diretamente com a ocultação da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade, ao mesmo tempo em que nos torna míopes. No exercício crítico de minha resistência ao poder da ideologia, vou gerando certas qualidades que vão virando sabedoria indispensável à minha prática docente. A necessidade desta resistência crítica, por exemplo, me predispõe, de um lado, a uma atitude sempre aberta aos demais, aos dados da realidade; de outro, a uma desconfiança metódica que me defende de tornar-me absolutamente certo das certezas. Para me resguardar das artimanhas da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros, nem tampouco me enclausurar no ciclo de minha verdade. Pelo contrário, o melhor caminho para guardar viva e desperta a minha capacidade de pensar certo, de ver com acuidade, de ouvir com respeito, por isso de forma exigente, é me deixar exposto às diferenças, é recusar posições dogmáticas, em que me admita como dono da verdade. Ensinar exige disponibilidade para o diálogo Nas minhas relações com os outros, que não fizeram necessariamente as mesmas opções que fiz, no nível da política, da ética, da estética, da pedagogia, nem posso partir do pressuposto que devo conquistá-los, não importa a que custo, nem tampouco temer que pretendam conquistar-me. É no respeito às diferenças entre mim e eles, na coerência entre o que faço e o que digo, que me encontro com eles. O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura, com seu gesto, a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história. Como ensinar, como formar sem estar aberto ao contorno geográfico, social, dos educandos? Com relação a meus alunos, diminuo a distância que me separa de suas condições negativas de vida na medida em que os ajudo a aprender não importa que saber, o do torneio ou do cirurgião, com vistas à mudança do mundo, à superação das estruturas injustas, jamais com vistas à sua imobilização. Debater o que se diz e o que se mostra e como se mostra na televisão me parece algo cada vez mais importante. Como educadores progressistas não apenas não podemos desconhecer a televisão, mas devemos usá-la, sobretudo, discuti-la. Não podemos nos pôr diante de um aparelho de televisão entregues ou disponíveis ao que vier. Ensinar exige querer bem aos educandos O que dizer e o que esperar de mim, se, como professor, não me acho tomado por este outro saber, o de que preciso estar aberto ao gosto de querer bem, às vezes, à coragem de querer bem aos educandos e à própria prática educativa de que participo. Na verdade, preciso descartar como falsa a separação radical entre seriedade docente e afetividade. A afetividade não se acha excluída da cognoscibilidade. O que não posso, obviamente, permitir é que minha afetividade interfira no cumprimento ético de meu dever de professor no exercício de minha autoridade. Não posso condicionar a avaliação do trabalho escolar de um aluno ao maior ou menor bem querer que tenha por ele. É preciso, por outro lado, reinsistir em que não se pense que a prática educativa vivida com afetividade e alegria prescinda da formação científica séria e da clareza política dos educadores. Nunca idealizei a prática educativa. Em tempo algum a vi como algo que, pelo menos, parecesse com um que-fazer de anjos. Jamais foi fraca em mim a certeza de que vale a pena lutar contra os descaminhos que nos obstaculizam de ser mais. Como prática estritamente humana, jamais pude entender a educação como uma experiência fria, sem alma, em que os sentimentos e as emoções, os desejos e os sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de ditadura reacionalista. Jamais compreendi a prática educativa como uma experiência a que faltasse o rigor em que se gera a necessária disciplina intelectual. Estou convencido de que a rigorosidade, a séria disciplina intelectual, o exercício da curiosidade epistemológica não me fazem necessariamente um ser mal-amado, arrogante, cheio de mim mesmo. Nem a arrogância é sinal de competência nem a competência é causa de arrogância. Certos arrogantes, pela simplicidade, se fariam gente melhor. 

 Síntese elaborada por Carlos R. Paiva – publicada na Revista de Educação nº 15

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

EDUCAR PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL


A educação voltada para o desenvolvimento sustentável permite que nós professores desenvolva ações juntamente com nossos alunos na construção do conhecimento voltado para a preservação do meio ambiente. Estamos vivendo profundas mudanças em nosso meio devido à má utilização dos recursos naturais, bem como a destruição de nosso sistema ambiental. Em decorrência desse fato, nós professores devemos conscientizar nossos alunos para que o desenvolvimento sustentável seja capaz de suprir as necessidades das futuras gerações. Sendo que atualmente o desenvolvimento tem trazido desastrosas consequências para a nossa sociedade e para a natureza. Por um lado à natureza e por outro lado a sociedade criam dois extremos: um de ricos e outro de pobres. Enquanto os mais ricos aumentam o seu rendimento, os mais pobres diminuíram. Isto indica que o tipo de desenvolvimento que estamos produzindo tende a se inviabilizar porque é injusto. Ao gerar concentração de renda, cada vez maior, ampliarão de tal sorte as diferenças sociais entre uma minoria cada vez menor, que tem cada vez mais, e uma imensa maioria, cada vez maior, que tem cada vez menos, cujo resultado não será outro senão uma gigantesca explosão social, a que já estamos assistindo nos dias de hoje. Com a educação sustentável podemos criar hábitos, atitudes e competências para envolver o educando no processo de construção social, valorizando assim as relações e o compromisso com o humano nas suas diferentes dimensões e com a natureza. Cito uma frase do autor Boff (1999), na qual diz: “Um novo modelo de desenvolvimento viável visaria produzir o suficiente para todos, preservando o capital natural da terra para nós e para as futuras gerações. A isto chamamos sustentabilidade”.

Luciano dos Santos

domingo, 14 de julho de 2013

MÚSICA EM AULAS DE MATEMÁTICA FAZ ESTUDANTES MELHORAREM DESEMPENHO EM SALA DE AULA

A ideia partiu da professora Cibele Ferreira, de Olímpia, que leciona Matemática há 23 anos 

Os números e as regras de matemática não assustam mais os alunos da E.E. Dalva Vieira Itavo, da cidade de Olímpia. Com copos nas mãos e a letra da música na ponta da língua, os estudantes do 8º ano utilizaram o “Cup Song”, técnica que alia palmas e batuques de copos plásticos, para criar uma versão que inclui conceitos matemáticos na letra. A ideia de inovar na hora de repassar o conhecimento veio de Cibele Cristina Carrara Ferreira, professora de Matemática da escola. Depois de assistir a um vídeo de um grupo musical que usava o ritmo nas suas apresentações, a educadora propôs o desafio para os alunos, que aceitaram a sugestão e apresentaram o resultado para a comunidade escolar no programa Escola da Família. “A atividade ajudou a desenvolver o raciocínio lógico, a coordenação motora e o equilíbrio. Consegui atingir alunos que não tinham interesse na matéria e que não faziam todas as atividades”, conta Cibele, professora que leciona Matemática há 23 anos.


 Da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo

A MATEMÁTICA NOSSA DE TODO DIA

Ao contrário do que pode parecer, a matemática não está somente nas salas de aula, nos exercícios e atividades propostos pelos professores. A matemática está em todo lugar, basta observar. Tudo o que fazemos no dia a dia envolve números, cálculos e contas. 
Numa cidade como São Paulo, por exemplo, a ciência pode estar numa obra, na qual é imprescindível para estabelecer a quantidade de materiais a utilizar e a altura de cada parede erguida. Sem a matemática, jamais seria possível determinar com exatidão cada ângulo, cada etapa da obra, cada pedaço dela.
Para além da engenharia, não faltam exemplos de profissionais que lidam com a matemática em seus trabalhos, muitas vezes sem perceber.
A matemática também pode estar presente em momentos de lazer, como quando calculamos o saldo de gols de um campeonato de futebol e, com base nesses números, estabelecemos quais são as chances de nosso time chegar às finais. Ou seja, fazer contas é importante para todos nós, o tempo todo.
Para saber mais sobre como a matemática está presente em nossas vidas, assista ao vídeo Fazendo Contas.
                                                                                                     Fernanda Gehrke




Dicas de reportagem, assistam!

http://globotv.globo.com/rede-globo/globo-educacao/v/conheca-exemplos-de-matematica-aplicada-ao-dia-a-dia/2498452/